Saúde e Segurança do Trabalho

Desafios em promover o comportamento seguro

De 2011 até 2021 a taxa de internações por acidentes envolvendo motocicletas aumentou em 55%, ao mesmo tempo, de 2022 para 2023 a produção de motos subiu em 11,3%. Se o número de acidentes vem aumentando, por que será que a produção não decai? A ideia aqui não é criticar o uso de motocicletas, mas questionar um ponto central na cultura de segurança: o que faz com que as pessoas se arrisquem? Qual processo vai afetar o comportamento seguro?

Hoje, a proposta é levantar alguns desafios envolvidos na promoção de comportamentos seguros e na cultura de segurança. Uma conversa que convoca o Sistema de Gestão de SST e a cultura organizacional como um todo.

Usualmente não gosto de exemplos pessoais, mas ao estudar sobre o tema de comportamento seguro me lembrei de um episódio da minha vida, que pode ser ilustrativo para a discussão que teremos aqui.

Antes de me comprometer com a Psicologia, optei por fazer um curso técnico na área de eletrotécnica, a formação tinha uma mescla entre atividades de escritório e atividades de práticas. Particularmente, sempre preferi as aulas do segundo tipo.

Pois bem, no meu segundo ano de curso fiz uma disciplina que me exigia a instalação de circuitos prediais. O circuito devia funcionar corretamente para que a atividade fosse concluída, ou seja, era preciso energizar e testar. A tensão, popularmente conhecida como voltagem, era de 220 V, e meu professor só estabeleceu uma regra no início do curso: quem levasse um choque elétrico perderia ponto.

Resumo da história: nenhum choque foi registrado pelo professor, mas em uma turma de 6 alunos, pelo menos metade saiu da aula algum dia, se queixando de ter levado um choque. E eu estou incluída entre esses alunos queixosos, optando por ficar quieta pelo receio de perder ponto, ou simplesmente por não querer ser tomada como tola pelos meus colegas e professor. 

Segundo Bley (2004), o comportamento seguro é a capacidade de identificar e controlar os riscos presentes numa atividade no presente, de forma a reduzir a probabilidade de ocorrências indesejadas no futuro, para si e para os outros. Na minha história o que desenvolvi não foi a capacidade de identificar e controlar riscos, eu adquiri a aptidão de esconder desvios e erros, tornei-me boa em tomar cuidado, especialmente na frente do meu professor. 

Conto essa história sem a intenção de condenar meu professor, um profissional com quem aprendi muito, a trago como ilustração da forma que normalmente o ambiente da prática trabalha o risco através da punição. Em vez de desenvolver a capacidade do profissional compreender o risco, o investimento é em treinar o medo, através dos vídeos sanguinários e expositivos. Ou através do apelo à punição, associando o comportamento de risco ao dano individual do trabalhador.

É inegável que o fornecimento de EPIs, a confecção de procedimentos, as capacitações e as técnicas de prevenção em SST são essenciais para o estabelecimento de padrões de segurança. Entretanto, nenhuma regra é capaz de controlar o fator humano, essa capacidade estranha que só os seres humanos possuem de agir ao avesso da expectativa, ou criar situações não imaginadas. Por isso, pensar o comportamento seguro como práticas de “poder e não poder” acaba contribuindo para que os procedimentos de segurança sejam apenas um “verniz”, na frente do supervisor são seguidos, mas na ausência dele deixam de existir.

Trabalhar o comportamento seguro como parte da cultura de segurança é uma ampliação do conceito no sentido de entender a ação do trabalhador como um ato contextualizado ao ambiente de trabalho.

Retomando o começo deste texto: o que faz com que as pessoas tomem certos riscos? O que afeta o processo de posicionamento frente ao risco? Aqui, as maiores contribuições vão vir da Psicologia da Segurança, especialmente através da análise do comportamento organizacional. 

Para pensar nesse ponto, toma-se como exemplo, uma Empresa X terceirizada de conservação e limpeza. Maria é funcionária desta empresa e trabalha alocada na Empresa Y, contratante da Empresa X. Um dia, um gerente da Empresa Y, solicitou que Maria fizesse a limpeza de uma estante metálica faltando 15 minutos para o fim do expediente dela. Apressada, Maria não pega os óculos de segurança e nem as luvas, e o produto químico em contato com a pele provoca uma alergia que a afasta por alguns dias.

De imediato é nítido que Maria não seguiu os procedimentos de segurança recomendados pela Empresa Y e que foi devidamente treinada pela Empresa X. Então, é razoável dizer que nesse caso a ausência de comportamento seguro de Maria é uma escolha individual dela, correto? Em termos de registro, podemos dizer que a causa do incidente é erro humano. Entretanto, para fins de análise de cultura de segurança e comportamento seguro é importante aprofundar a discussão. 

Sendo Maria uma trabalhadora terceirizada, qual será o grau de autonomia dela para apontar ao gerente da empresa contratante que o tempo disponível de expediente não é suficiente para executar a demanda? Como será que os fatores sociais influenciam na escolha de Maria por não utilizar EPIs? Será que para ela o EPI é um protetor ou impeditivo da entrega rápida do trabalho? O que será que levou o gerente da empresa contratante a solicitar a demanda apenas no fim do expediente?

Ter essas perguntas em mente na hora de realizar uma análise sobre o comportamento de Maria vai desvelando que por detrás do ato, existe uma série de antecedentes que não estavam sendo avaliados e nem controlados.

Não é preciso ficar apenas nesse caso hipotético, tomando-se o comportamento seguro como uma capacidade de identificar e controlar riscos já soma-se a isso uma série de habilidades que precisam ser avaliadas desde um recrutamento e seleção. Um profissional que não tenha atenção dividida pode não ser apto para uma função de condução de veículos, pois suas habilidades estão aquém da função. Isso não o impede de atuar em outra função, mas apenas evidencia a necessidade de pensar o comportamento seguro desde as práticas de seleção de pessoal. 

A ideia de mensuração já traz em si uma lógica científica objetiva, ou seja, números exatos. Então, em uma empresa, o controle final de SST vai dizer sobre o número de horas de treinamentos, o número de dias sem acidentes, a frequência em DDS, o número de dias de validade de um EPI e assim por diante. Será que essas métricas são suficientes para promover o comportamento seguro?

A promoção do comportamento seguro exige uma análise qualitativa das situações, por exemplo, a análise de contexto que foi feita no caso do incidente da Maria. É a partir dessa visão contextual que a empresa consegue aumentar a eficácia de iniciativas de controle, adaptando a linguagem dos treinamentos para o público, mapeamento os sentidos do uso de EPI para o trabalhador e até chegando a afinar um mapeamento de competências por cargo. 

Por isso, ao pensar em comportamento seguro não basta dizer o que não deve ser feito, é necessário entender a ação do trabalhador como parte de uma cultura organizacional e da relação com o trabalho. Intervenções eficazes só são possíveis se considerarmos a complexidade do fator humano envolvido.


Verônica Resende

Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atua no campo de Psicologia Organizacional e Psicologia Clínica. Tem experiência de dois anos em Plantão Psicológico e há três anos atua na área de gestão de pessoas da Ius.

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